Uma homenagem do Congresso Nacional aos 80 anos da União Nacional dos Estudantes (UNE), no último dia 10, levou o senador José Serra (PSDB-SP) a remexer o baú da história da política e dos políticos do Brasil.
O tucano revelou uma passagem da ditadura militar que estava escondido e até era desconhecido para muitos.
No dia 31 de março para 1º de abril de 1964, quando explodiu em todo o país o golpe militar, Serra estava em Manaus.
Então presidente da UNE, uma entidade definida por ele como bem diferente do que é hoje, porque era uma “escola de politização”, foi à capital do Amazonas para participar de um seminário “maldito”.
Isso é o que ele deixou registrado nos anais do Congresso ao discursar nos 80 anos da entidade:
“Lembro que, no dia do golpe, havia um seminário em Manaus para discutir desnacionalização da Amazônia. Foi um seminário, para mim, maldito, porque eu cheguei até lá e tive que sair, sem falar nada, sem reunir com ninguém, porque o golpe era iminente”, relembrou Serra.
Para o líder estudantil da época, foi um momento triste da história ver o comando do país ser tomado à força. “Ele [o golpe] pessoalmente, para mim, teve um preço alto, mas, para outros, teve um preço muito maior”, afirmou o senador.
O discurso de Serra (transcrito abaixo das notas taquigráficas do Senado) foi elogiado pela senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB), que presidiu a sessão homenageadora à UNE.
“Foi um belíssimo depoimento, de fato, por quem dirigia a União Nacional dos Estudantes no período do golpe militar. Eu, sinceramente, senador Serra, não sabia que vossa excelência se encontrava na cidade de Manaus, minha querida capital, no dia do golpe”, disse a senadora.
Esse trecho da sessão foi destacado pela coluna Painel, da Folha de S.Paulo , e lembrado nesta terça, dia 22.
Veja o vídeo da homenagem e a nota taquigráfica da sessão:
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O SR. JOSÉ SERRA (Bloco/PSDB – SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Eu queria dar meu bom-dia a todos e a todas e cumprimentá-los através da Carina e através da Presidenta eleita agora, Marianna Dias, com quem estive ontem.
A UNE na minha gestão, Aldo Arantes – não sei se você lembra –, foi a primeira vez em que uma mulher ocupou uma diretoria da UNE. Isso foi no 26º ano da UNE. E hoje nós temos uma sucessão de mulheres na presidência da entidade. É uma mudança, ao longo do tempo, bastante interessante de se registrar.
A realidade estudantil da época era extraordinariamente, profundamente diferente da que é hoje. Basta dizer que há hoje 5 ou 6 milhões de estudantes universitários e que, na época, havia 100 mil estudantes universitários. Do grupo populacional apto a frequentar a universidade na época, apenas 1% era premiado com a universidade. Daí, inclusive, em músicas mesmo da UNE constava esse 1% – lembra-se, Aldo? –: “Viva 1% do povo brasileiro”.
A realidade, portanto, era diferente. Os estudantes eram na média mais politizados. Não havia, ou havia muito pouco, ensino superior privado, pago. Havia em universidades como Católica, Mackenzie, instituições dessa natureza. Mas ensino privado mesmo, no modelo empresa, praticamente inexistia.
O Congresso da UNE reunia dois estudantes de cada faculdade do Brasil. Isso equivalia a mais ou menos mil estudantes. A maneira como se fazia a sucessão era através de um debate, em que os candidatos da situação… A diretoria da UNE formulava um documento de situação e aqueles que aderiam votavam nos candidatos a Presidente. Havia uma disputa – houve no ano anterior à minha eleição e houve durante a minha eleição. Ia-se às bancadas, as bancadas votavam, e aí ficava escolhido o Presidente e, a partir daí, se formava a diretoria.
Quiseram o destino, as circunstâncias que ao aniversário anterior eu estivesse presente, data marcante na história da UNE, que foi o 25º aniversário, quando o Aldo Arantes era Presidente – viu, Aldo? Quando você era Presidente – e passou a gestão ao Vinícius Caldeira Brant, que ganhou também na base da disputa nas bancadas. O Aldo era o Presidente da UNE e organizou o Congresso em Quitandinha, o 25º aniversário. Foi o primeiro Congresso a que eu fui. Fui eleito no ano seguinte, mas esse foi o primeiro. Esta é a segunda comemoração. Quando vejo que já são 80 anos – 80 anos, de 1937 a 2017 –, fico realmente assombrado de que estejamos aqui, presentes, em um encontro agradável, em homenagem a uma entidade que tem um papel bastante relevante na história do Brasil contemporâneo.
Quero dizer que as nossas bandeiras, na época, estavam centradas principalmente na questão da abertura da universidade, pelo fato de que apenas 1% da população favorável, em idade de estar na universidade, conseguia adentrar a universidade, e que o número de analfabetos no Brasil ainda fosse da ordem de 30 a 40 milhões de brasileiros. Então, boa parte da luta estudantil estava voltada a essas questões, afora a luta política geral, acoplada à então, na época, Frente de Mobilização Popular, que foi fundada – creio – durante a gestão do Aldo Arantes, que foi a gestão – não faço aqui nenhuma homenagem cerimoniosa – mais dinâmica que eu conheci da UNE. Foi quando aconteceram mudanças importantes. Foi quando foi lançado o Centro Popular de Cultura, que transformou a UNE em um foco de transformações na cultura brasileira – música, cinema, teatro. Foi quando, realmente, com base no Rio de Janeiro e nos cariocas, que eram a grande maioria, a UNE marcou um papel que é pouco conhecido hoje em nosso País.
Eu, como era ligado ao grupo de teatro da Politécnica, a faculdade em São Paulo onde eu estudava, já tinha feito um trabalho nessa direção na presidência da União Estadual dos Estudantes de São Paulo, mas quando cheguei ao Rio, dei muita força aos trabalhos que foram começados pelo Aldo, convivendo com gente como o Ferreira Gullar – que não era da nossa geração, mas era o Presidente do CPC –, o Vianinha, o Cacá Diegues, o Arnaldo Jabor, o Leon Hirszman, Carlos Lyra, todo esse pessoal e muitos outros.
Inclusive produziram peças que, creio, são antológicas. Eu queria recomendar que todos aqui escutassem, como Auto dos 99%, que creio ter sido feita na gestão do Aldo, mas fui eu que tive a ideia de fazer um long-play a esse respeito. Existe um long-play. Você já ouviu, Vanessa? Era uma obra-prima! Você via, inclusive, qual era o grau de politização. Claro, o que era a esquerda na época? Antilatifúndio, anticapital estrangeiro e mais Estado. Isso do ponto de vista das reivindicações gerais: reforma agrária, nacionalização, expulsão, de um certo modo, de capital estrangeiro. A orientação do disco era a revisão de toda a história do Brasil, através do ensino, mas com um nível de humor e de sofisticação. É realmente espantoso o ponto a que se chegou na época.
E as décadas se foram. O golpe militar terminou com a UNE do ponto de vista legal, formalmente. Foram anos difíceis. Muita gente morreu partindo para outras formas de luta, que não a luta de rua, a luta pacífica. Não havia nada em matéria de luta armada no Brasil antes do golpe de 64. Havia uma tentativa aqui ou ali, mas isso não tinha um lugar importante na história daquele momento. Houve muita perseguição.
Houve até um Presidente da UNE que foi morto, creio, durante o seu mandato – não tenho certeza – que foi Honestino Guimarães, que era da Ação Popular daqui de Brasília. A Ação Popular era hegemônica no movimento estudantil e viera da juventude universitária católica, principalmente. Eu, não; eu era da ala leiga da AP, coisa que, às vezes, criava situações embaraçosas no final das reuniões, em geral – o Aldo lembrará ou não quebrará lembrar. Por exemplo, no congresso fundador em Salvador, em janeiro de 1963, houve uma missa.
Como eu dizia, era um quadro extraordinariamente diferente: uma escola de politização, uma escola de participação, uma escola de aprendizado.
A UNE foi reaberta em 1979. Eu tive o orgulho de ser convidado para fazer o discurso de reabertura. Acho interessante também que divulguem fotos minhas desse dia, quando eu tinha 37 anos, em 1979, como se fossem da época da Presidência da UNE. Isso significa que eu estava bem, eu parecia bastante jovem naquela época. Houve a reabertura e a sequência que todos já, de uma ou outra maneira, conhecemos.
Não é meu papel fazer prescrições a respeito do que fazer, mas, a meu ver, a importância de um trabalho daqui para diante – eu dizia ontem à Marianna – é conseguir retomar o debate sobre o Brasil diante da juventude brasileira. Isso é muito mais difícil do que era no passado – muito mais –, dadas a dimensão e a heterogeneidade. Trabalhar com massas homogêneas…
(Soa a campainha.)
O SR. JOSÉ SERRA (Bloco/PSDB – SP) – … e relativamente reduzidas e trabalhar com o contrário é muito difícil, mas esse é um grande desafio. Acho que é preciso que se retome a atividade cultural e que é preciso retomar os debates sobre realidade brasileira, com tópicos específicos.
Lembro que, no dia do golpe, havia um seminário em Manaus para discutir desnacionalização da Amazônia. Foi um seminário, para mim, maldito, porque eu cheguei até lá e tive que sair, sem falar nada, sem reunir com ninguém, porque o golpe era iminente. Foi triste ter que, naquele momento, abandonar a atividade para vir sofrer o golpe, porque o fato é que o golpe aconteceu e veio em cima da gente logo de cara.
Ele pessoalmente, para mim, teve um preço alto, mas, para outros, teve um preço muito maior, até porque eu tive oportunidade, no exílio, de aproveitar para melhorar a minha formação profissional e procurar ser – uma citação heterodoxa num encontro como este –, como eu ouvia o De Gaulle dizer na França, un homme d’Etat, um homem de Estado. Foi nisso que eu me empenhei ao longo da minha vida, e em cima disso é que será feito o balanço do que eu fiz ou deixei de fazer.
Meus parabéns! Estou à disposição, como a Carina sabe, e vou até torcer para que ela se eleja deputada em Santos. Não vou dizer que vou apoiá-la, porque criaria problema no meu Partido, mas, sem dúvida, ela me vai ter na torcida para isso, a fim de que possamos continuar nos encontrando e possamos continuar “trocando figurinhas” e dando batalha juntos.
Muito obrigado a todos vocês pela atenção. (Palmas.)
A SRª PRESIDENTE (Vanessa Grazziotin . Bloco/PCdoB – AM) – A Mesa cumprimenta o Senador José Serra, que, como ele próprio percebeu, teve seu pronunciamento ouvido com muita atenção por todos os presentes. Foi um belíssimo depoimento, de fato, por quem dirigia a União Nacional dos Estudantes no período do golpe militar. Eu, sinceramente, Senador Serra, não sabia que V. Exª se encontrava na cidade de Manaus, minha querida capital, no dia do golpe.
O SR. JOSÉ SERRA (Bloco/PSDB – SP. Fora do microfone.) – Muito antes do seu nascimento.
A SRª PRESIDENTE (Vanessa Grazziotin . Bloco/PCdoB – AM) – Muito antes do meu nascimento. É muito bom que esse registro seja feito mesmo. (Risos.)
Eu quero comunicar que já são 11h13 e que a sessão deliberativa do Senado começaria às 11h. Entretanto, nós conseguimos organizar aqui o encerramento e vamos ter que passar um pouquinho além do tempo. Então, comunicarei como será. Falará o Deputado Glauber, que já estava inscrito e que já pode se dirigir à tribuna. E pedimos muitas desculpas ao Senador Dário Berger, que aqui está, ao Deputado Patrus Ananias, que aqui está, ao Deputado Jean Wyllys, à Deputada Erika Kokay, à Senadora Fátima Bezerra, pois todos estão inscritos, mas, infelizmente, por conta da sessão deliberativa, não poderemos dar a palavra. Após o Deputado Glauber, que será o último Parlamentar, falará por três ou quatro minutinhos o nosso querido ex-Deputado Aldo Arantes, que falará em nome dos ex-Presidentes da União Nacional dos Estudantes que não estão no Parlamento hoje, inclusive no nome da Carina. Em seguida, Jessy e Marianna, Vice-Presidente e Presidente, respectivamente, da UNE.
Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado